Porto de Recreio do Carregal em Ovar, 3880-163
telef. 256591236 - fax 256592548
nadoovar@gmail.com

sábado, março 08, 2008

ASSOREAMENTO DA RIA

"in OAVEIRO.PT"


Assoreamento da ria força clubes náuticos a pagar dragagens
Texto dePedro José Barros
Cerca de 24 mil euros. Foi quanto a Associação Náutica da Gafanha da Encarnação (ANGE) teve de desembolsar, em 2006, para continuar a navegar de uma forma digna no chamado Canal da Bruxa, que liga a Costa Nova à Gafanha da Encarnação, em Ílhavo. Sem uma entidade empenhada na retirada pendular de inertes na zona exterior ao porto comercial, combatendo o assoreamento que avança na Ria de Aveiro, as associações náuticas vêem-se ano após ano entregues à sua mercê, reféns de um processo burocrático "caótico" que coloca entraves até a quem se disponibiliza, por si, a fazer o que mais ninguém faz.
No ano passado, a ANGE viu-se na contingência de pagar a três dias de operações no Canal da Bruxa devido aos problemas causados pelo assoreamento, intervenção que se seguiu a outras duas, em 1996 e no ano 2000, todas "pagas pela Associação". "É um canal que assoreia bastante porque nunca é limpo como deve ser. No ano passado, enviámos o nosso projecto para as entidades e estivemos nove meses à espera que nos dessem o sim para que fizéssemos nós mesmos a intervenção de limpeza dos lodos. Além disso, ainda nos enviaram um ofício para pagar o parecer, fomos pagar para nos dizerem se o parecer era favorável ou não. É realmente o país que temos", desabafa António Alberto, presidente da ANGE.
Ria de ninguém
A resposta acabou por ser positiva e a dragagem efectuada, mas foi "muito cara" e só possível à custa de uma grande "poupança" e da ausência de regalias para os membros da associação.
Para António Alberto, o assoreamento é uma realidade "bem viva no coração da ria". "Basta passarmos umas horas na ria e esperarmos que a maré baixe para ver o estado caótico em que se encontra. Temos alertado várias vezes e o que posso dizer é que actualmente a ria é de todos e não é de ninguém", acrescenta, apontando o dedo ao facto de a ANGE não saber a quem se dirigir para intervir e ter de fazer as dragagens visto que "não há ninguém que as faça". "Se a ria continua neste estado, mais meia dúzia de anos e só conseguimos navegar com as marés cheias".
Equipamento comprado na Torreira
O problema estende-se a toda a ria, de São Jacinto ao Canal das Pirâmides, da Costa Nova à Gafanha da Encarnação, do Canal de Mira às marinhas e à Torreira (Murtosa). Neste último caso, o assoreamento no porto de recreio está a causar bastantes problemas à Associação Náutica da Torreira, ao ponto de haver, a partir de meia maré, uma "impossibilidade total" de os barcos transitarem livremente, denuncia José Simões, vice-presidente da colectividade.
A Associação Náutica da Torreira ainda não fez dragagens mas já comprou o equipamento para o fazer. Custou à volta de "40 mil euros", incluindo o transporte, e deverá chegar "8 ou 10 de Outubro" a Leixões, directamente dos Estados Unidos da América.
O processo está a ser conduzido numa parceria entre Associação e da Câmara Municipal da Murtosa, para depois ser apresentado à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR-C). O sentimento é de que ainda há um "grande caminho a percorrer" até à obter a autorização, mas José Simões confia na sua rapidez.
"É dramático para as associações porque podiam canalizar estes recursos para outros investimentos. Mas se mais ninguém faz, temos de ser nós a fazê-lo porque se coloca em causa a sobrevivência do próprio equipamento", comenta.
100 mil euros é incomportável
Menos sorte ainda tem tido o Clube de Vela da Costa Nova (CVCN). Quando se ergueram as suas instalações, o Clube financiou parte da dragagem, contando com a ajuda da Administração do Porto de Aveiro (APA), que na altura ainda se ocupava da gestão da zona externa ao porto de Aveiro.
Depois disso, a situação mudou. O CVCN iniciou um processo burocrático para efectuar por si novas dragagens mas a esperança inicial transformou-se num verdadeiro "calvário" administrativo entre várias entidades.
Agravando ao pesadelo das autorizações, o CVCN deparou-se com sinal de ‘stop’ tão ou mais desmobilizador, o dinheiro. Só para conseguir manter os barcos a flutuar nas zonas mais críticas, colocando à quota de segurança de meio metro de profundidade na baixa-mar, seriam precisos 100 mil euros.
Resultado? O CVCN teve de desistir da ideia, já que não conseguiria, ao mesmo tempo, assegurar a escola de vela e as despesas correntes do Clube, posicionando-se numa situação desconfortável, uma vez que também precisa de quotas de navegação. A esperança reside agora no "novo modelo de gestão da ria que estará para sair", aponta o presidente do CVCN, David Calão.
Situação "catastrófica"
O canal principal que serve, por outro lado, a Associação de Vela e Cruzeiro de Aveiro (AVELA), não tem causado muitos problemas. Já o mesmo não se pode dizer do Canal das Pirâmides, que se encontra assoreado.
A AVELA ainda não foi forçada a desembolsar para garantir a navegabilidade. O presidente da Associação, Paulo Reis, considera que a ria vive actualmente uma situação "catastrófica", com pontos negros assoreados em praticamente todo o mapa.
Quanto maior for o tempo de espera por uma intervenção, mais difícil será recuperar a laguna. É preciso "tentar perceber por que é que há mais areias nalguns sítios" e como se comportam as correntes para construir uma prevenção alicerçada, não desconexa. Os braços cruzados conduzirão, inevitavelmente, a uma ria "completamente assoreada e pantanosa".
Justificam-se desassoreamentos constantes
Geologicamente falando, o assoreamento da Ria de Aveiro acaba por ser uma realidade normal, seguindo a laguna o exemplo de outros sistemas costeiros. Há até a necessidade de manter parte dos sedimentos devido ao ecossistema que deles sobrevive.
Os desequilíbrios provocados pelas dragagens – quando bem feitas - acabam por ser colmatados, a prazo, pela capacidade de adaptação dos próprios ecossistemas, conclui Cristina Bernardes, do Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro (UA).
Como explica a responsável, os sedimentos que chegam à laguna e se acumulam "provêm das linhas de água (em pequena percentagem), da erosão ao longo das margens e, obviamente, do mar". Isto de uma forma constante, justificando-se desassoreamentos regulares para preservar as quotas de segurança.
"Sabemos que há muitos canais de menores dimensões e esteiros completamente assoreados, em que nem sequer se tem mexido nos últimos tempos. Isto é um sistema muito dinâmico mas a permanência das partículas dentro do sistema, o seu tempo de residência no interior, é extremamente elevado. Um grãozinho que seja, largado na Vagueira, não quer dizer que após um ciclo de maré já esteja no mar. Pode demorar semanas ou até meses até sair para fora", ilustra Cristina Bernardes.
APA deposita inertes no mar
E o que fazer aos sedimentos dragados? A responsável da UA salienta que a legislação aponta para que sejam re-utilizados na re-alimentação de praias deficitárias em areia ou então re-colocados nas correntes de deriva litoral que fariam o seu trabalho de as redistribuir ao longo da costa".
Os inertes provenientes das dragagens de manutenção que a APA faz constantemente nos seus canais comerciais, colocando-os com as quotas ao Zero Hidrográfico definido, não têm normalmente valor comercial. São, assim, "rejeitados e depositados no mar", explica o presidente do conselho de Administração da APA, José Luís Cacho. Para o presidente, esses inertes não têm qualidade para se depositarem em praias deficitárias: "Antigamente até se punha ao pé da praia e as praias ficavam todas sujas", diz.
Marinhas prestes a invadir a estrada
Os passeios de lazer que o levam a usufruir da zona lagunar já fazem parte da rotina. Com 60 anos, o médico José Domingos, aveirense cuja paixão pela ria se enraiza nos antepassados, vê no assoreamento um problema "complexo", moldado por várias arestas e que requer um estudo das causas para que qualquer intervenção se ajuste.
Antigamente, a ria aparecia-lhe como um território ordenado e operacional, com ilhas delimitadas. Hoje, o médico observa uma laguna votada ao "abandono", para o que muito contribuiu o decair da actividade salineira.
A seu ver, as marinhas são hoje em dia um espaço assoreado. Descuidou-se o conserto das montas limitantes que quebravam, a que se juntou a "erosão" provocada pelas correntes resultantes das obras na Barra. O efeito bola de neve fez o resto.
Tal como nas restantes zonas parcas em correntes, os sedimentos suspensos depositaram-se no fundo, elevando os níveis das marinhas. "Quando são marés muito altas, aquilo quase que invade a estrada. A médio prazo a água virá para cima das estrada", alerta José Domingos, para quem a "tutela por entidades que nada percebem e nada têm feito pela ria" tornou-a "irrecuperável".
Pescadores ficam em terra
Se é ou não recuperável, é uma constatação que escapa ao entendimento de quem se preocupa sobretudo com o ganha pão. No Cais dos Pescadores da Costa Nova, alheios às decisões de gabinete, os pescadores falam de vidas inteiras dedicadas à pesca artesanal que, com o passar dos anos, se angustiam. Desenham outra ria, já ida, com mais peixe e bem menos salpicada de constrangimentos. Uma ria em que maré baixa não era automaticamente sinónino de um dia de trabalho perdido, derrotado pelo lodo.
"Isto é mau para os pescadores. Haviam de limpar mais a ria, torná-la mais funda. Já foi falado duas três vezes e a câmara não quer saber, não quer fundear isto e os barcos ficam sempre em seco", atira Emílio Oliveira.
Claro que, como em todos ‘senãos’, há também uma ‘bela’, há quem nem torça tanto o nariz: "Em certos cabeços, onde se cria o berbigão e a amêijoa, convém ficar [areia] porque isso é o nosso ganha-pão mas os canais deviam ser fundeados", também se ouve.
Mas o sentimento geral é de desalento, da "pouca vergonha" que se dispara em tom acusatório e da certeza de pescadores como Diamantino Martins: "A ria está toda seca, tudo! Aqui já se passa a pé de um lado para o outro, é só lodo e não vejo ninguém a querer saber disto".
ed. 835, 06 de Março de 2008